sexta-feira, 11 de março de 2011

No Brasil, crimes da ditadura ressuscitam enfrentamento entre militares e governo

Por ANTONIO CARLOS LACERDA (Correspondente Internacional)
 BRASILIA/BRASIL (PRAVDA.RU) - No Brasil, um documento do Exército contrário à criação da Comissão Nacional da Verdade para apurar crimes praticados durante a ditadura militar de 1964 a 1985 e apontar seus responsáveis reabre o enfrentamento - iniciado no final do mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva - entre militares e o governo brasileiro, por conta das chamadas feridas incicatrizáveis.

No documento, elaborado pelo Comando do Exército, com a adesão da Marinha e da Aeronáutica, os militares afirmam que "O argumento da reconstrução da história parece tão somente pretender abrir ferida na amálgama nacional, o que não trará benefício, ou, pelo contrário, poderá provocar tensões e sérias desavenças ao trazer fatos superados à nova discussão".

O documento afirma que não há mais como apurar fatos ocorridos no período da ditadura militar e que todos os envolvidos já estariam mortos. "Passaram-se quase 30 anos do fim do governo chamado militar e muitas pessoas que viveram aquele período já faleceram: testemunhas, documentos e provas praticamente perderam-se no tempo. É improvável chegar-se realmente à verdade dos fatos".

No documento, os militares reconhecem ser legítimo o direito das famílias de buscar desaparecidos, mas falam em revanchismo: "O que não cabe é valer-se de causa nobre para promover retaliações políticas".

A finalidade da Comissão Nacional da Verdade é esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas durante o regime militar, como torturas, mortes e desaparecimentos, além de identificar os responsáveis por esses crimes, mas sem buscar a punição deles, por causa da Lei da Anistia.

Desde sua criação, a comissão tem sido alvo de polêmicas. Por causa de pressões dos militares, o governo já modificou o texto original para assegurar que a Lei da Anistia seja respeitada e atos cometidos no regime militar não provoquem processos penais.

Autoproclamada vítima da ditadura militar no Brasil, a presidente Dilma Rousseff elegeu a Comissão Nacional da Verdade como uma das prioridades do seu governo e o Palácio do Planalto exigiu explicações do Ministério da Defesa sobre o documento dos militares, uma clara demonstração contrária à instalação da comissão.

Conscientes das dificuldades que encontraram pela frente para barrar a criação da Comissão Nacional da Verdade, os militares se preparam para o embate no Congresso Nacional e têm prontas cinco emendas para modificar o texto original do governo.

Eles querem que testemunhas e militares sejam convidados, e não convocados, como prevê o projeto do governo; que se investiguem casos de terrorismo e justiçamento praticados pela esquerda; e o fim de anonimato para quem entregar documentos de forma voluntária.

Na emenda em que pedem apuração também de casos de terrorismo e justiçamento (militantes de esquerda que matavam traidores dentro de seu grupo), os militares afirmam que, assim como a tortura e o homicídio, são crimes equiparados a hediondos e que devem receber o mesmo tratamento pela Comissão Nacional da Verdade.

O projeto do governo assegura o anonimato a testemunhas que, voluntariamente, entregarem documentos ou prestarem depoimentos. Os militares querem a identificação de todas as pessoas. "É atender ao princípio do contraditório e da ampla defesa. Denúncias anônimas poderiam surgir sem fundamento", argumentam.

Outra mudança desejada pelos militares é trocar a expressão "convocar" por "convidar", o que garantiria que ninguém seria obrigado a comparecer à Comissão da Verdade.

Outra alteração proposta pelos militares é impedir sessões fechadas, como prevê o texto do governo, para resguardar a intimidade e a vida privada das pessoas. "É para garantir transparência e espírito democrático às atividades da comissão, evitando que reuniões secretas tenham por fim direcionar os trabalhos. Não há motivos que justifiquem os trabalhos secretos da comissão", dizem os militares.

Os militares pretendem incluir no texto que a comissão deve se restringir à busca de fatos históricos e "não deve ter por objetivo perseguir ou tentar incriminar pessoas".

Em um dos trechos do documento dos militares, a assessoria parlamentar do Exército ressalta que testemunhas dos episódios ocorridos na ditadura morreram e provas se perderam no tempo. Entretanto, essa versão, que vem sendo dada pelas Forças Armadas desde a redemocratização, foi derrubada por uma série de reportagens e livros sobre o regime militar e os crimes ocorridos na ditadura. Até o próprio Exército já divulgou em documentos informações sobre o período.

O governo brasileiro quer que a Comissão Nacional da Verdade seja logo instalada no Congresso Nacional para que sejam iniciadas as investigações dos crimes ocorridos durante a ditadura militar.

Enquanto no documento divulgado, os militares afirmam que o Brasil "superou muito bem essa etapa de sua história", mas, o Ministério da Defesa, em nota, reafirmou sua posição em favor da instalação da comissão, ressuscitando a crise entre governo e militares no Brasil.

No comunicado, a assessoria do ministério destaca que o texto dos militares contrários à comissão foi elaborado em setembro de 2010, isto é, antes das negociações de Dilma Rousseff com os comandos do Exército, Marinha e Aeronáutica para unificar um discurso a favor da Comissão Nacional da Verdade. Entretanto, o ministério não apresentou provas de que o documento foi mesmo produzido no ano passado.

No final de 2010, antes de assumir o governo, Dilma se reuniu com os comandantes da Aeronáutica, do Exército e da Marinha para exigir discrição sobre o tema. Essa foi umas das condições para que eles continuassem no cargo.

Em janeiro deste ano, o ministro da Segurança Institucional, general José Elito, levou um "puxão de orelha" da presidente por dizer que não era vergonha para o País o desaparecimento de presos políticos.

A ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, disse, através de sua assessoria, que não iria se pronunciar sobre o assunto. Desde que assumiu a pasta, ela tem evitado entrar no debate sobre a ditadura, por ter sido orientada a falar de temas menos polêmicos da área de direitos humanos.

Diante do impasse, resta, então, uma situação que jamais será solucionada: os torturados que sobreviveram e familiares dos que morreram querem a vingança, a todo custo, um sentimento inerente ao ser humano; enquanto os que torturaram ou mataram buscam o esquecimento, a qualquer preço, visando escapar de uma punição, cuja dimensão é uma incógnita.

Entenda a Polêmica Sobre a Comissão Nacional da Verdade

Em 2010, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva iniciou o último ano de seu mandato tendo que lidar com tensões vindas de dentro e de fora do governo causadas pelo lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos, assinado por ele no último mês de dezembro.

Entre as diversas medidas propostas pelo programa, as que mais têm causado dores de cabeça para o governo foram as relacionadas à criação de uma Comissão da Verdade para investigar abusos cometidos durante o regime militar.

A proposta causou irritação em diversos setores, principalmente nas Forças Armadas, e teria feito até mesmo com que o ministro da Defesa, Nelson Jobim, ameaçasse pedir demissão caso o projeto não fosse revisto.

Na tentativa de acalmar os ânimos dos setores insatisfeitos, Lula teria prometido fazer alterações no texto, o que causou irritação ao então ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, que também ameaçou se demitir.

O Programa Nacional de Direitos Humanos foi criado e proposto pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República no último dia 21 de dezembro de 2010, sendo a terceira versão de um programa de direitos humanos do governo federal, precedido pelo PNDH-I, de 1996, e o PNDH-II de 2002, ambos publicados durante os mandatos de Fernando Henrique Cardoso.

O projeto é uma ampla carta de propostas, que inclui medidas sobre temas que vão desde programas para o fortalecimento da agricultura familiar até ações relativas à saúde, como o apoio do governo a projetos de lei sobre a descriminalização do aborto, passando pelos direitos das minorias e mecanismos de monitoramento de veículos de comunicação.

Algumas dessas propostas foram criticadas por membros da Igreja Católica, ruralistas, entidades representantes de canais de televisão, jornais e revistas, além de membros do próprio governo.

Ao todo, o decreto assinado pelo ex-presidente Lula defende a aprovação de mais de 20 leis, que ainda precisam ser analisadas pelo Congresso.

Embora diversas propostas do programa tenham causado protestos de vários setores, alguns dos pontos mais polêmicos do documento encontram-se no chamado Eixo Orientador VI, que propõe medidas sobre o "Direito à Memória e à Verdade" em relação ao período militar.

O ponto que mais causou tensões foi a Diretriz 23, que apresenta como objetivo estratégico "promover a apuração e o esclarecimento público das violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política ocorrida no Brasil" durante o regime que vigorou entre 1964 e 1985.

Para isso, o programa propõe a criação de um grupo de trabalho formado por membros da Casa Civil, dos Ministérios da Justiça e da Defesa e da Secretaria Especial de Direitos Humanos para elaborar, até o próximo mês de abril, um projeto de lei que institua uma Comissão Nacional da Verdade, que teria a tarefa de examinar abusos cometidos durante o regime militar. A criação desta comissão também teria de ser aprovada pelo Congresso Nacional.

Segundo o PNDH-3, entre as atribuições da Comissão Nacional da Verdade estará a de "colaborar com todas as instâncias do poder Público para a apuração de violações de Direitos Humanos, observadas as disposições da Lei Nº 6.683, de 28 de agosto de 1979", que é conhecida como Lei de Anistia.

Além disso, a Comissão também teria o objetivo de "identificar e tornar públicas as estruturas utilizadas para a prática de violações de Direitos Humanos, suas ramificações nos diversos aparelhos de Estado e em outras instâncias da sociedade".

Caso seja criada e instalada, a comissão teria apenas papel de investigar os fatos, mas não de punir qualquer um dos implicados, o que cabe apenas à Justiça.

O PNDH também propõe, entre outros pontos, a supressão da legislação brasileira de normas do período militar que "afrontem os compromissos internacionais e os preceitos constitucionais sobre Direitos Humanos". Para isso, seria criado um grupo de trabalho que discutiria com o Congresso a revogação de leis remanescentes do período.

O programa também propõe a identificação e sinalização de locais públicos que "serviam à repressão ditatorial", além de uma legislação de abrangência nacional que proíba que ruas e prédios públicos recebam o nome de pessoas que "praticaram crimes de lesa-humanidade".

O governo argumenta que as propostas "fortalecem a democracia" e "neutralizam as tentações totalitárias".

Embora o programa tenha sido bem recebido por entidades defensoras dos direitos humanos, a OAB e representantes de vítimas de abusos, as propostas em relação ao período militar causaram um grande desconforto em outros setores, principalmente entre os membros das Forças Armadas.

Logo após a assinatura do decreto presidencial, os comandantes do Exército, Enzo Martins Peri, e da Aeronáutica, Juniti Saito, ameaçaram pedir demissão caso os trechos que instituem a Comissão da Verdade não fossem revogados.

Eles teriam declarado ao ministro da Defesa, Nelson Jobim, que o plano seria "insultuoso, agressivo e revanchista" contra as Forças Armadas. Jobim também teria ameaçado deixar o governo, alegando não ter sido consultado sobre o trecho em questão.

No início de janeiro deste ano, os presidentes dos Clubes Militar, Naval e de Aeronáutica, que representam militares da ativa e da reserva, divulgaram um comunicado onde afirmam que a proposta causa "divisão dos brasileiros" e trará à tona "sequelas deixadas por ambos os lados".

O comunicado ainda diz que, caso a Comissão da Verdade seja instituída, ela deveria examinar os crimes cometidos por militantes de esquerda que combatiam o regime, além dos abusos praticados por agentes do governo.

A proposta de proibir que locais públicos possam levar nomes de agentes do regime, assim como a identificação de locais onde teriam ocorrido abusos também foram vistas como persecutórias pelos setores militares.

Além disso, muitos argumentam que as novas medidas iriam comprometer o ambiente de conciliação nacional instituído pela Lei de Anistia, de 1979.

Em resposta às críticas, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos divulgou nota onde afirmou que o plano "ficou disponível no site da SEDH durante o ano de 2009, aberto a críticas e sugestões".

Além disso, defensores da proposta de criação da Comissão da Verdade afirmam que é importante investigar a atuação dos militares durante o regime, já que a atuação dos grupos de esquerda já seria conhecida por meio de relatos e outros documentos.

Para estes grupos, é importante apurar a atuação dos agentes do regime para que seja possível esclarecer, por exemplo, o destino dos cerca de 400 cidadãos que foram mortos ou ainda estão desaparecidos.

Já em relação aos militantes de esquerda que cometeram crimes à época do regime militar, os defensores da proposta argumentam que eles já foram punidos com prisões e até mortes.

Em nenhum de seus trechos, o Programa Nacional de Direitos Humanos cita textualmente a revogação da Lei de Anistia, instituída em 1979 e que determinou a "anistia a todos quantos (...) cometeram crimes políticos ou conexos com estes" entre 1961 e 1979.

Ao enumerar as atribuições da Comissão da Verdade, o PNDH inclusive afirma que o trabalho do grupo deverá observar as disposições da Lei Nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, a Lei de Anistia, o que poder ser interpretado como um reconhecimento da legitimidade da legislação.

A Diretriz 25 do PNDH, no entanto - que propõe a "revogação das leis remanescentes do período de 1964-1985 que sejam contrárias às garantias dos Direitos Humanos" -, é vista com desconfiança por diversos críticos, que enxergam no trecho uma possível intenção de revogar a Anistia.

Oficialmente, a Secretaria Especial de Direitos Humanos afirma que o trecho não se refere à Lei de Anistia, mas a outras legislações do período, como a Lei de Imprensa - que foi derrubada pelo STF no ano passado - e a Lei de Segurança Nacional.

O texto original, que fala da apuração de violações "praticadas no contexto da repressão política" - que foi interpretado pelo militares como indicativo de que apenas os abusos de membros do regime seriam investigados - seria substituído pelo genérico "praticadas no contexto dos conflitos políticos".

Desta forma, o plano não especificaria de qual dos lados - se dos militares ou opositores - os eventuais crimes seriam apurados.

De tudo isso, o que é que se apura e pode ser previsto? Se apura e se prevê que, pelo que se sabe da alma humana e da personalidade da presidente Dilma Rousseff, a Comissão Nacional da Verdade será instalada no Congresso Nacional, os crimes apurados e os responsáveis punidos exemplarmente, fato que terá conseqüências profundamente imprevisíveis.

ANTONIO CARLOS LACERDA é Correspondente Internacional do PRAVDA.RU. E-mail:- jornalistadobrasil@hotmail.com

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