quarta-feira, 30 de junho de 2010

As cartas de alforria no Rio de Janeiro Imperial 2

Cartas pagas
Liberta em 1861, a escrava africana Vitória Benguela conseguiu sua alforria pagando inicialmente um conto e setenta e cinco réis (1:075$000) por sua liberdade. Avaliada em 1.400$000; teve a condição imposta por sua senhora, dona Ana Rosa Conceição, que pagasse “por seus meios” o valor restante em parcelas de 200 mil réis ao mês.
A prática do pagamento da alforria em prestações é recorrente e serve a mostrar a tentativa dos proprietários de manter a ordem escravista pelo máximo de tempo que fosse possível antes de sua efetiva extinção, que se deu em 1888. Ainda que liberto, o cativo permaneceria ligado a seu senhor através da dívida que, se não paga, tornaria nulo o efeito da alforria.
Uma opção para o recém-liberto era apelar para empréstimos com compadres, familiares, instituições benfeitoras e até bancos. Vejam esse caso truncado: Maria Isabel teve sua alforria registrada no Ofício de Notas do Rio de Janeiro e, pela transação, a escrava pagaria a seu proprietário Frederico J. Wasse 1:200$000 em duas parcelas iguais, sendo a primeira já na ocasião do registro. Depois de pago esse restante, Maria Isabel deveria servir por 1 ano recebendo 10$000 por mês.
Há ainda casos de escravos que são liberados a ganhar por si mantendo um pequeno negócio geralmente itinerante; valia vender bolos, doces, consertar sapatos, barbear, carregar pesos para pagar a dívida. Noutros casos, um benfeitor pagava o valor integral da alforria e o escravo se comprometia a servi-lo durante um tempo x até saldar a nova dívida. Por último, existiram também os casos de troca. De alguma forma raramente explicada na documentação, o escravo postulante a liberdade adquiria outro escravo para dar em troca; uma transação particularmente comum na libertação de parentes ou em causa própria dos cativos.
Cartas Gratuitas
Nas concessões de alforria gratuitas encontramos os casos mais instigantes, isso porque eles mostram certas mudanças de comportamento de proprietários e escravos frente ao sentido declínio do regime. Alguns proprietários, depois da metade do século XIX, passam a negociar condições de servir assalariadas e/ou com carga horária estabelecida. Na alforria de Miquelina Cabinda de 44 anos, de 1846, sua condição para ser livre foi a de servir oito horas mensais por 10 anos a sua senhora. Coisa parecida com o que aconteceu a Daniel Crioulo que, em 1851, teve de servir por 3 anos a seu senhor com salário de 1$000 por mês.
Mas as crianças foram as que mais se beneficiaram com manumissões gratuitas, não só por serem usualmente libertas através delas, mas também por, com freqüência, receberem promessas de cuidados e educação por parte de seus senhores. Isso aconteceu com José dos Reis Pardo, de 13 anos, filho de Carolina Monjolo e do senhor, Cristiano José Hess: a alforria é dada sem condições, porém o dono deixa expresso que o pardo irá “acompanhar o senhor até o fim da educação”. E atenção para o detalhe de que o nome da criança é José dos Reis, e o do senhor, José Hess. Há coisa aí; no falar, são sobrenomes parecidos. José poderia ser mesmo filho do seu senhor.
No rol das cartas que têm por condição viagens, aparece ainda o exemplo de José Pardo como filho de seu senhor que, por motivo de amizade, condiciona que o escravo deve viajar para os Açores em companhia de um certo Manoel Silva Vitorino, seu “protetor”. Há quem suspeite que esse caso deixe entrever algum favorecimento homossexual.
Contundente é a alforria de Severina Crioula datada de 1850; segundo o proprietário, “[Severina] há muito tempo que goza de sua liberdade debaixo da minha tutela”. Recebe então a carta com a condição de prestar obediência a seu antigo proprietário “quer seja conservando-se nesta ou em outra qualquer parte que eu determinar, até que fique habilitada para poder tratar de si”. Parece que, para Severina, o documento foi uma mera formalidade pois já andava por ali e por lá como livre.
Algumas condições, curiosamente, se referem a viagens e/ou ao isolamento do recém-liberto. Joana Parda, de 13 anos, tem expressa em sua condição ir morar em Pernambuco (morava no Rio de Janeiro) com seus pais, ficando impedida de voltar à Corte, o que anularia sua liberdade. Já Luiza Conga, em 1831, tinha em sua carta “expressa condição que a escrava nunca mais apareça na casa do senhor”; o que instiga é o motivo: “porque a escrava vai casar com Bernardo Dias de Lima”. A imaginação tenta esclarecer: teria o senhor de Luiza uma terrível rixa com esse Bernardo? Seria apaixonado por ela?
Muitas outras condições podem ser encontradas nessas cartas de alforria, são uma chance de observar certas mentalidades da época através de discursos e negociações ocorridas basicamente entre pessoas sem grandes posses de regiões urbanas e rurais. Para saber mais sobre o cotidiano dos escravos no Brasil, e os casos protagonizados por eles, seus senhores e demais setores da população carioca oitocentista, vale ir aos livros "Visões da Liberdade" de Sidney Chalhoub e "Vida dos Escravos no Rio de Janeiro" da americana Mary Karash.

Fonte: http://obviousmag.org/

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