quinta-feira, 1 de julho de 2010

Damas do dia, damas da noite

Entre a carne e o espírito, a tão comedida esposa Severine só encontrava paz nas suas tardes como Belle de Jour. (Catherine Deneuveuve, 1967)
"Uma dama na sociedade, uma prostituta na cama" é uma frase que deveria se orgulhar de transitar por aí cheia de adesões mesmo sendo tão amoral. Ela consegue reunir num espaço curto litros de devassidão que, misturada a uma discreta malícia cria a espiritualidade ideal para que não seja apedrejada em praça pública. Claro, os protestos teriam sua razão de ser: durante séculos as mulheres tiveram como prioridade serem as esposas ideiais, sempre boazinhas e bem arrumadas, obedientes. Da porta para fora, finas e recatadas, capazes de engrandecer o homem que acompanham, serem bem vistas e publicamente virtuosas.Quando o século XIX inventou a privacidade, o maior problema de todos era conter os desejos que apareciam agora que cada um tinha seu quarto, agora que os casais descobriam as quatro paredes; mas como a mocinha e depois a mulher poderia dar vazão às vontades e depois comparecer ao chá beneficente no clube de leitura? Sexo devia ser no escuro, limpo, de preferência com um crucifixo na cabeceira da cama para Deus assistir e bater palma: a reprodução estava garantida, a infelicidade íntima também. Mas, ao contrário delas, os maridos não ficavam no redirecionamento das energias para o crochê, o piano, ou os filhos. Eram nos bordéis que tradicionalmente começavam sua vida sexual, e era no bordel que iam fazer tudo o contrário do que recomendavam a igreja e a sociedade organizada.
O jovem aristocrata Armand enfrentaria tudo pelo amor da cobiçada cortesã Marguerite Gautier no romance de Alexandre Dumas. Tornado em ópera, filme e outras tantas adaptações A Dama das Camélias confunde-se com a história do próprio autor. (Greta Garbo em Camille, 1936)
 
 
A imaginação que temos dessas valentes profissionais do sexo é sempre alegre: muita música, espartilhos apertadíssimos e cigarros de piteira, todas as polonesas, brasileiras e argentinas - ali, invariavelmente, francesas - são galhofeiras, dispostas a praticamente tudo na cama, na noite, no álcool. Amigas sem frescuras. Mas quem é que vai apresentar a Rose Sofie pra mamãe?
Uma prostituta na sociedade, uma dama na cama
As mulheres de braços dados exigindo direitos iguais são só uma imagem de jornal frente à revolução mundial provocada por cada uma que desafiou pai, marido, filho e tias recalcadas em prol de um trabalho bem pago, de voto, de minissaia e de orgasmos. Múltiplos, por favor.
Mas a ideia das prostitutas continua fascinando. Aquela coisa mítica de mulheres liberais, libertinas, que enfrentam os perigos mais absurdos, os amores mais platônicos sem deixar o rímel borrado estragar o charme. Qualquer menina que quisesse ser atriz, modelo ou cantora virava puta no disse me disse, era automático; é um gosto de corpo solto no mundo. Como não admirar? A despeito das ombreiras que transformaram mulheres em homens, elas permaneceram sempre na obrigação profissional de serem femininas, da escort mais cara à gordinha da Praça Tiradentes, sedução é pra pagar o almoço.
Gabriela Leite é ex-prostituta da Boca do Lixo em São Paulo, socióloga formada pela USP e idealizadora da potente grife DASPU: "eu não aguentava aquela vidinha de escritório, pegando ônibus..."
Hoje as mulheres percebem que queimar sutiãs não foi sentença de mudança de sexo, nem precisamos ser assexuadas. Uma puta na sociedade, uma dama na cama; ninguém precisa deixar de querer ser mãe, de gostar de cozinhar, de ser desejada. Não é questão de escolha, mas de trânsito, de poder andar e ser o que quiser, quando pintar vontade, quando precisar. Podem fumar e gargalhar alto feito uma pomba gira ou podem presidir reuniões tanto de cúpula quanto de cópula nas dominações e submissões - todas dignas. Aprendemos com as biscates reais e ficcionais, que mulher mesmo é isso, escolher todo dia ser pela ambigüidade.
Irremediavelmente atraída pelas casas de striptease no caminho de casa, a tímida telefonista Brook Busey tornou-se Diablo Cody. A dançarina, escritora e roteirista ganhadora do Oscar, certa vez teve o seio ferido durante um programa.
O Moulin Rouge habita o imaginário como um lugar onde o luxo e a solidão se misturam de modo febril ao can can, às cores, bebidas e cintas-liga.
Fonte: http://obviousmag.org/

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