sexta-feira, 16 de julho de 2010

Memorial de um génio - José Saramago

José Saramago morreu no dia 18 de Junho de 2010. Não sabemos se teve ou não um encontro com Deus, no céu, no inferno, ou no “desqualificado purgatório”, mas podemos ter a certeza que ambos precisavam de ajustar contas. Ateu convicto, José Saramago tem Deus como um dos temas-fetiche das suas obras. Era com Ele que gostava de conversar, era sobre as suas representações terrestres que dissertava com uma brilhante clareza interpretativa, muitas vezes recheada de causticidade, atraindo polémicas e excomunhões de muitos lados.
Saramago encontra-se agora, porventura, num, seu e claro, vazio inconsciente. Um vazio que se preenche, como acontece sempre com alguém literariamente famoso que perece, num crescendo de interesse limitado no tempo, como também sempre acontece com o interesse súbito pela obra do perecido que renasce no consciente coletivo, com as vontades de evasão do presente e da realidade quotidiana dos cultos e incautos mortais, com a leitura das suas obras. Agora encontra-se na escuridão da sua própria ausência, presente aos latejantes de vida na significância com que estruturou as letras, as mesmas peças com que jogamos o jogo da vida em verbo, sem, no entanto e inevitavelmente, a perícia da exposição do capital intelectual e a arte da construção literária saramaguiana, ou, talvez, o encontremos um dia a conversar com Blimunda Sete-Luas, num metafísico “Memorial do Convento” (1982), esta agora hiperciente da azáfama e dos interstícios da vida, e d’ “As Intermitências da Morte” (2005).
Apenas vagamente, conhecemos nós Saramago nos seus tempos de juventude. Sobeja um hiato temporal entre a primeira publicação do jovem escritor, bem depois das noites de sono partilhadas na cama com os avós Jerónimo e Josefa e os porcos, numa Azinhaga Ribatejana dos tempos da meia sardinha onde as pessoas eram constantemente “atiradas ao chão” por forças opressoras e esmagadoras, essa Azinhaga que o petrificou em estátua num banco de jardim, e a profícua e epopeica revolução literária, 30 anos depois.
Saramago não foi um académico e não ganhou prémios literários aquando da sua juventude. Saramago não foi sequer unanimemente querido, consensual, ou, como por vezes acontece nas esferas culturais e espetaculares, adulado. Terá inclusive dividido a população portuguesa, este anti-herói para parte do senso comum e para a grande parte da mediocridade política. Saramago não competiu o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa, porque não o deixaram. Os cordéis da manipulação literária e os senhores das marionetas políticas e religiosas não o permitiram. A humanização do mito de Jesus Cristo, n’ “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991), foi a desculpa para tentar olvidar o homem que pôs Portugal (no mapa) e Espanha, o iberismo saramaguiano, a navegar pelo oceano, na sua “Jangada de Pedra” (1986). Países à deriva na unificação atracada de uma Europa cada vez mais distante e, paradoxalmente, maior. Portugal é um estado laico. A separação dos poderes entre a igreja e o estado estão, há muito, constitucionalmente definidos e aprovados. A dissecação de Jesus Cristo, o desdobramento do mito, do homem-deus em homem-(demasiado)humano, colocou no parlamento uma inflamada discussão sobre se seria este Saramago um homem suficientemente português para representar uma nação tão histórica e histericamente conectada a um deus (pátria, família) que este homem, português de nascença é certo, não acreditava. Talvez não suficientemente português mas suficientemente reconhecido mundialmente, Saramago arrecadou o Nobel da Literatura em 1998 e, justiça divina, o Prémio Camões em 1995. Não se refugiou no país que não aceitava as suas ideias, vá, os seus romances misto fusional de uma realidade tépida e uma ficção transpirada, como se se tapassem as lacunas de realidades incertas com o vómito de tempos deploráveis. Não se refugiou sequer, nem o degredo psicológico parece ser um motivo. Não hoje. Saramago escolheu na sua ibéria o recanto de memória mais distante dos homens que o rejeitaram, perto daqueles que são “as maiores vítimas do capitalismo ocidental”. O destino foi Lanzarote, a poucos quilómetros da costa africana. Ilha perdida das Canárias, Espanha, inóspita. Um acaso desidratado, um pedaço de terra negra onde escolheu viver e amar. Temos a certeza que se a ibéria se desprendesse do resto da Europa, Lanzarote ficaria no sítio, a ver passar ao largo a sua assustadora alucinação tectónica. Em Lanzarote nasceu uma epidemia contagiosa que colapsa a sociedade, uma cegueira espontânea que viria a revelar o que de mais extremo veste o ser humano – da animalidade à racionalidade, da violação ao amor. Ainda assim, esta penosa experiência para o autor e para o leitor, o “Ensaio Sobre a Cegueira” (1995), é uma “longa tortura” que mostra que nós, humanos, “não somos bons”. Dos mesmos olhos que viveram a visão da escuridão mundial vieram as lágrimas, durante a apresentação da adaptação deste ensaio ao cinema, ao lado do diretor brasileiro Fernando Meirelles.
De Saramago podemo-nos essencialmente deleitar com cerca de 30 anos de obra, de uma literatura “anti-gramatical”, ou seja, que reduz grande parte da portugalidade, a sua enorme língua e as suas orgulhosas regras gramaticais, a um estilo novo e único, um estilo que transforma o hermético das convenções, da pontuação e dos parágrafos, do senso do tamanho frásico, numa literatura encadeada, numa leitura do pensamento, numa leitura que se lê sem se conseguir parar. Pelo menos até Saramago querer. Desmistifica o mergulho profundo e embrenhado no romance, alertando e antecipando os pensamentos e as dúvidas do leitor, tornando a relação entre ambos mais verdadeira, porém mais dominada. Incorrecta ou elitista, dizem alguns, eis uma forma de desconstruir centenas de anos de convenções e acordos em algumas dezenas de anos de romances, poemas e peças teatrais, contos e crónicas, viagens, diários e memórias e “A Maior Flor do Mundo” (2001), o único título infantil. É a língua algo em constante mutação, não é assim, querido acordo ortográfico? Deve então ser a escrita de Saramago um corte, um raio, uma faísca de mudança nessa transformação, nessa mutação.
Saramago foi, é e será tão importante para a literatura portuguesa e mundial como o foram Fernando Pessoa ou Carlos Drummond de Andrade. Eis o homem que quando fala não mede o comprimento do sentido das palavras, em oposição à medida do comprimento interpretativo da sua escrita. Um homem que “quando se enfurece é simpático”, um autoproclamado “pessimista pela razão, optimista pela vontade”. Saramago diz o que pensa e o pensamento dele ecoa em palavras não polidas, despidas, em construções sólidas da sua verdade. Sem medo. Assume-se como comunista, ponto. Não ortodoxo, ponto. A tudo isto se chama, supomos, liberdade de expressão. Liberdade essa que por entre tantos anos de luta parece ainda periclitar nas certezas de alguns eruditos.
O funeral reuniu muitos simpatizantes, amigos, amantes da sua literatura, curiosos e a natural nata politizada. Notou-se, no entanto, e de alguma forma despreocupadamente (pela irrelevância no caso), a ausência daquele que na altura em que um evangelho incendiou um parlamento era o primeiro-ministro, o actual Presidente da República Portuguesa, o Senhor Professor Doutor Aníbal Cavaco Silva. Politicamente correcto, como sempre e como tem que ser, não se coibiu, com uma expressão entediada e simuladamente entristecida, de ler um comunicado escrito por um seu qualquer assessor. Um escrito banal daquele a quem Saramago chamou “o mestre da banalidade”. Acredito que sentisse uma perda para o país, mas não muito.
José Saramago morreu no dia 18 de Junho de 2010. Saramago não pertence ao céu, para onde voou o fumo da combustão do seu corpo, mas sim à terra, local onde agora repousam as suas cinzas. Se de perto tocar Saramago as estrelas será sentado na “sua” passarola, onde a bordo conta a Blimunda Sete-Luas e a Baltazar Sete-Sóis “O Conto da Ilha Desconhecida” (1997). Foram “Os Poemas Possíveis” (1966) que nos deixou, e todas as letras encadeadas, “Deste Mundo e do Outro” (1971).
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Fonte: http://obviousmag.org/

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